sexta-feira, 18 de abril de 2014

Poesias de Augusto dos Anjos



O Morcego 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!


Idealização da Humanidade Futura 


Rugia nos meus centros cerebrais

A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais!

Não sei que livros, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!




Uma Noite no Cairo 


Noite no Egito. O céu claro e profundo

Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando à lua...
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.

Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzia 
Solta um brado epilético de injúria!

Em derredor duma ampla mesa preta
- Última nota do conúbio infando -
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam Kinnors! Depois tudo é tranquilo...
Apenas como um velho stradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!              


                 
Vozes de um Túmulo 

Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho

Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reis convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!


Versos de Amor
                                         a um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a.... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias - o inventor da flauta -
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu pobre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!




A Árvore da Serra


- As árvores, meu filho, não tem alma!

E, esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha'alma!...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
           

Vencido 

No auge de atordoadora e ávida sanha

Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
À vontade do vômito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.


O Corrupião 

Escaveirado corrupião idiota,

Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pôes-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!




Alucinação à Beira-Mar 

Um medo de morrer meus pés esfriava.

Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!


Vandalismo

Meu coração tem catedrais imensas, 

Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandido as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos! 



Versos Íntimos 


Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!





Vencedor 


Toma as espadas rútilas, guerreiro,

à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!


A Ilha de Cipango 

Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito...

Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, que diante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!

Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num eleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
À cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.

Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro,
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A Luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dos realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento e uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!





Eterna Mágoa 


O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo Inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!


Queixas Noturnas 

Quem foi que viu minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate, 
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
E a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas, uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

E natural que esse Hércules se esforça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O Velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasf
êmia!

Que dentro de minh'alma americana 
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!


Seja esta minha queixa derradeira

Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Diz a este monstro que eu fugi de casa!

Por Augusto dos Anjos, em Eu

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013


Sou aquele que sorri com os olhos...
Você vai sentir minha respiração no vento e meu toque quando a grama acariciar o seu pé.
Sou a gota de orvalho que mata a sede das fadas, sou o chamado dos pássaros, o uivo dos lobos, um raio de luz entre as árvores.
Você vai me ouvir cantar entre os bosques cheios de memórias, entre as folhas brilhantes das bétulas.
Sou aquele que lhe traz flores e dança contigo na clareira entre os grandes plátanos.
Sou o Espírito da natureza, a alma da floresta...
O Homem Verde das Matas...

*The Green Man

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A Música de Erich Zann


Examinei diversos mapas da cidade com o maior cuidado, mas jamais reencontrei a Rue d'Auseil. Não foram só mapas modernos, pois eu sei que os nomes mudam. Pelo contrário, investiguei a fundo a antiguidade do lugar e explorei pessoalmente todas as regiões, independentes do nome, que pudessem corresponder à rua que conheci como Rue d'Auseil. Mas, apesar de todo o esforço, persiste o fato humilhante de que não consigo encontrar a casa, a rua ou mesmo a localidade onde, durante os últimos meses da minha humilde vida como estudante de metafísica na universidade, ouvi a música de Erich Zann.
    Que a memória esteja fraca não me espanta; pois a minha saúde física e mental sofreu um grave abalo duramente o período em que morei na Rue d'Auseil, e lembro de que não levei nenhum de meus conhecidos até lá. Mas que eu não consiga reencontrar o lugar é ao mesmo tempo singular e espantoso; pois ficava a meia a pé da universidade e destacava-se por características que dificilmente seriam esquecidas por alguém que lá houvesse estado. Jamais encontrei outra pessoa que tenha visto a Rue d'Auseil.
    A Rue d'Auseil ficava de frente para um rio escuro, bordejado por altíssimos depósitos de tijolo à vista com janelas embaçadas e atravessado por uma opressiva ponte em pedra escura. O caminho ao longo do rio ficava sempre à sombra, como se a fumaça das fábricas vizinhas fosse uma barreira perpétua contra o sol. O rio também era malcheiroso, com odores fétidos que jamais senti em outras partes e que, alguma dia, talvez me ajudassem a encontrá-lo, visto que eu os reconheceria de imediato. Além da ponte ficavam as estreitas ruelas calçadas com seus trilhos; e então vinha a subida, a princípio suave, mas de um aclive vertiginoso na altura da Rue d'Auseil.
    Nunca vi outra rua tão estreita e tão íngreme com a Rue d'Auseil. Era quase um penhasco, fechada aos veículos, consistindo, em boa parte, de lances de escada, e terminando, no cume, em um alto muro tomado por hera. A pavimentação era irregular; ora lajes, ora paralelepípedos e, às vezes, terra batida com uma resistente vegetação verde-acinzentada. As casas eram altas, com telhados triangulares, antiquíssimas, e inclinavam-se de maneira bizarra para trás, para a frente e para os lados. Às vezes casas opostas, ambas inclinadas para a frente, quase se tocavam por sobre a rua, como um arco; e sem dúvida evitavam que a luz chegasse até o solo. Havia algumas pontes entre as casas nos dois lados da rua.


    Os habitantes da Rue d'Auseil me impressionaram de forma bastante peculiar; no início, pensei que era por serem silenciosos e reticentes; mas depois descobri que era por serem todos muito velhos. Não sei como fui parar em uma rua como aquela, mas decerto eu estava fora de mim ao me mudar para lá. Eu havia morado em muitos lugares pobres, sendo sempre despejado por falta de pagamento; até que enfim cheguei à casa inclinada de Blandot, o paralítico, na Rue d'Auseil. Era a terceira casa a partir do alto da rua e, por uma boa margem, a mais alta de todas.
    Meu quarto ficava no quinto andar; a única habitação ocupada, uma vez que a casa estava quase vazia. Na noite em que cheguei ouvi uma estranha música no sótão logo acima e, no dia seguinte, perguntei ao velho Blandot do que se tratava. Ele explicou-me que era uma velho violista alemão, um homem estranho e mudo que assinava como Erich Zann e que à noite tocava na humilde orquestra de algum teatro; e acrescentou que o gosto de Zann por tocar à noite após voltar das apresentações era o motivo por que havia escolhido o isolamento do quartinho no sótão, cuja trapeira solitária era o único ponto em toda a rua de onde se podia enxergar por cima do muro em direção ao declive e ao panorama além.
    A partir de então eu ouvia Zann todas as noites e, ainda que ele mantivesse-me desperto, eu me sentia assombrado pela estranheza daquela música. Mesmo com meus parcos conhecimentos de arte, eu tinha certeza de que nenhuma daquelas harmonias tinha relação alguma com as músicas que eu ouvira antes; e concluí que Zann era um compositor de gênio altamente original. O quanto mais eu escutava, mais crescia o meu fascínio, até que, passada uma semana, resolvi conhecer o velho.
    Certa noite, quando Zann retornava do trabalho, interceptei-o ainda no corredor e disse que gostaria de conhecê-lo e de estar em sua companhia enquanto tocasse. Ele era um homenzinho magro, encurvado, com trajes puídos, olhos azuis, um rosto grotesco, de sátiro, e quase careca; diante das minhas palavras, pareceu a um só tempo irritado e assustado. Meus modos afáveis, no entanto, terminaram por vencê-lo; mesmo um pouco contrariado, Zann gesticulou para que eu o seguisse pelas escadarias escuras, rangentes e decrépitas. Seu quarto, um de apenas dois na íngreme água-furtada, dava para o Oeste, em direção ao alto muro que demarcava o fim da rua. O cômodo era muito amplo e parecia ainda maior devido à austeridade e ao abandono extremos. A mobília consistia apenas em uma estreita cama de ferro, uma pia imunda, uma pequena mesa, uma grande estante de livros, uma estante de música e três cadeiras à moda antiga. No cão, partituras amontoavam-se sem nenhuma ordem aparente. As paredes eram de tábuas cruas, e davam a impressão de jamais terem recebido uma camada de reboco; enquanto a abundância de pó e teia de aranhas fazia o lugar parecer mais deserto do que abitado. Era evidente que o belo mundo de Erich Zann ficava em algum cosmo longínquo da imaginação.
    Apontando para uma cadeira, o mudo cerrou a porta, fechou a enorme trava de madeira e acendeu uma outra vela além da que trazia consigo. A seguir tirou a viola de uma capa roída pelas traças e, com ela em mãos, sentou-se na cadeira menos desconfortável. Zann não usou a estante de música, mas, sem oferecer nenhuma alternativa e tocando de memória, encantou-me por mais de uma hora com melodias que eu jamais ouvira; melodias que devem ter sido sua própria criação. Descrever a natureza exata daquelas composições é impossível para alguém ignorante em música. Eram uma espécie de fuga, com passagens recorrentes das mais cativante, mas chamaram-me a atenção pela ausência daquelas estanhas notas que eu ouvira do meu quarto em outras ocasiões.

    Eu lembrava daquelas notas assombrosas, que amiúde tentei cantarolar e assobiar para mim mesmo, de modo que, por fim, quando o largou o arco, perguntei se poderia escutar algumas delas. Assim que comecei meu pedido o rosto enrugado de sátiro perdeu a tranquilidade enfadonha que mantivera durante a apresentação e pareceu exibir aquela mesma mistura de irritação e susto que percebi na primeira vez em que abordei o velho. Por um instante senti-me inclinado a usar da persuasão, sem levar muito em conta os caprichos da senilidade; e tentei despertar a veia mais excêntrica de meu anfitrião assobiando algumas das melodias que eu havia escutado na noite anterior. Mas não insisti por mais do que um instante; pois quando o violista mudo reconheceu a ária que eu assobiava, seu rosto crispou-se de repente em um expressão que transcende qualquer análise, e sua mão direita, esguia, fria e ossuda, estendeu-se para tapar a minha boca e silenciar aquela imitação grosseira. Quando fez esse gesto, Zann demonstrou mais uma vez sua excentricidade ao olhar de relance para a janela solitária, com a cortina fechada, como se temesse algum invasor - um olhar duplamente absurdo, uma vez que a água-furtada pairava alta e inacessível acima de todos os demais telhados, sendo o único ponto em toda a extensão da rua, segundo o senhorio havia me dito, de onde era possível ver além do muro em seu ponto mais alto.
    O olhar do velho fez-me recordar o comentário de Blandot, e, por puro capricho, senti o desejo de olhar para fora, em direção ao amplo e vertiginoso panorama de telhados ao luar e luzes citadinas além do alto da montanha, que, de todos os moradores da Rue d'Auseil, apenas o músico irritadiço podia ver. Fiz um movimento em direção à janela e teria aberto as cortinas ordinárias quando, com uma raiva assustada ainda maior, o locatário mudo lançou-se outra vez sobre mim; dessa vez, apontando a porta com a cabeça, enquanto insistia em me arrastar para fora com ambas as mãos. Sentindo repulsa do meu anfitrião, ordenei que me soltasse e disse que eu partiria de imediato. Zann afrouxou a mão, e, quando percebeu a minha repulsa e o meu desgosto, sua própria raiva pareceu atenuar-se um pouco. Logo ele voltou a apertar os dedos que se haviam relaxado, mas dessa vez com modos amistosos, e pôs-me sentado em uma cadeira; então dirigiu-se com um aspecto melancólico até a mesa abarrotada, onde escreveu umas quantas palavras a lápis, no francês rebuscado dos estrangeiros.
    O bilhete que por fim entregou-me era um apelo à tolerância e ao perdão. Zann explicava que era velho, solitário e perturbado por medos e transtornos nervosos causados pela música e por outras coisas.Tinha apreciado minha companhia e gostaria que eu o visitasse mais vezes, sem reparar nessas excentricidades. Mas ele não consegui tocar suas estranhas melodias para os outros nem aguentava ouvi-las dos outros; tampouco aguentava que os outros encostassem nos objetos de seu quarto. Antes de nossa conversa no corredor, Zann não sabia que suas melodias eram audíveis do meu quarto e. no bilhete, perguntou se eu poderia solicitar a Blandot que me acomodasse em um andar mais baixo, onde eu não pudesse ouvi-las à noite. O músico prontificava-se a pagar a diferença do aluguel.
   Enquanto fiquei sentado decifrando aquele francês execrável, senti-me um pouco mais tolerante em relação ao velho. Ele era vítima de moléstias físicas e nervosas, assim como eu; e meus estudos metafísicos haviam me ensinado a bondade. Em meio ao silêncio, ouvi um som discreto na janela - como se a veneziana houvesse sacudido com o vento noturno, e por algum motivo dei um sobressalto quase tão violento como o de Erich Zann. Então, quando terminei de ler, apertei a mão de meu anfitrião e despedi-me como amigo.
    No dia seguinte Blandot providenciou-me um quarto mais caro no terceiro piso, entre o apartamento de um velho agiota e o quarto de um estufador muito respeitável. O quarto andar estava vazio.
    Não custou muito para eu descobrir que o entusiasmo de Zann em relação à minha companhia não era tão grande como parecera de início, enquanto tentava persuadir-me a mora em um apartamento mais baixo. Ele não solicitava nenhuma visita e, quando eu o visitava, Zann parecia irrequieto e tocava sem atenção. As visitas eram sempre à noite - durante o dia ele dormia e não recebia ninguém. Minha simpatia pelo violista mudo não aumentou, ainda que o quarto na água-furtada e a estranha música continuassem me inspirando um singular fascínio. Eu sentia o vivo desejo de olhar por aquela janela, por cima do muro, e avistar o declive oculto com os telhados esplendorosos e os coruchéus que deveria haver por lá. Certa vez, subi até a água-furtada enquanto Zann tocava no teatro, mas a porta estava trancada.


    Tive de me contentar em escutar a música do velho mudo. No início eu subia, pé ante pé, até o meu antigo quinto andar, mas logo tomei coragem suficiente para subir o último lance de escadas decrépitas que conduzia ao sótão. No estreito corredor, junto à porta trancada e à fechadura coberta, muitas vezes eu ouvia sons que me infundiam um temor indefinível - o temor de prodígios vagos e mistérios ameaçadores. Não que os sons fossem terríveis, pois não era esse o caso; mas vinham carregados de vibrações que não sugeriam nada existente nesse mundo e, em certos momentos, assumiam uma qualidade sinfônica que eu relutava em atribuir a um único instrumentista. Sem dúvida, Erich Zann era um gênio de talento inigualável. À medida que as semanas passavam, a música tornava-se mais frenética, enquanto o velho músico exibia um esgotamento e uma furtividade cada vez mais pronunciados, dignos de compaixão. A essa altura Zann recusava-se a me receber, em quaisquer circunstâncias, e evitava-me sempre que nos víamos nas escadas.
    Então, certa noite, enquanto eu ouvia junto à porta, escutei a viola estridente irromper em um babel de sons caóticos; um pandemônio que me teria levado a duvidar da minha própria sanidade frágil se, de trás do intransponível portal, não viesse uma prova lamentável de que o horror era real - o grito terrível e desarticulado que só os mudos conseguem proferir e que surge apenas nos momentos de mais intenso temor e angústia. Bati várias vezes na porta, mas não obtive resposta. Fiquei esperando no corredor escuro, tremendo de frio e de medo, até escutar os débeis esforços empreendidos pelo pobre músico a fim de se reerguer com a ajuda de uma cadeira. Acreditando que Zann houvesse recuperado a consciência após um breve desmaio, voltei a bater na porta, ao mesmo tempo em que exclamava o meu nome para tranquilizá-lo. Escutei-o cambalear até a janela, fechar os caixilhos e as venezianas e então cambalear até a porta, que abriu com certa dificuldade. Dessa vez, o prazer que sentiu em me ver era legítimo; pois aquele rosto distorcido irradiou alívio quando o pobre homem se agarrou ao meu casaco como uma criança agarra-se à saia da mãe.
    Tremendo de forma patética, o velho fez-me sentar em uma cadeira ao mesmo tempo em que se deixou cair sobre outra, junto à qual se viam a viola e o arco atirados no piso. Zann ficou sentado por um tempo sem esboçar reação alguma, meneando a cabeça, mas aparentando, de maneira paradoxal, uma concentração intensa e apreensiva. Logo ele pareceu dar-se por satisfeito e, dirigindo-se a uma cadeira junto à mesa, escreveu um bilhete, entregou-me e retornou à mesa, onde começou a escrever sem parar com grande rapidez. O bilhete implorava, em nome da compaixão e também da minha curiosidade, que eu ficasse onde estava enquanto ele escrevia, em alemão, um relato completo de todos os terrores que o afligiam. Esperei enquanto o lápis do mundo corria sobre a página.
    Foi talvez uma hora mais tarde, enquanto eu seguia esperando e as folhas escritas às pressas pelo velho músico continuavam a acumular-se sobre a escrivaninha, que vi Zann dar um sobressalto diante do que parecia ser a insinuação de um choque horrendo. Sem dúvida ele estava olhando para a janela de cortinas fechadas e escutando, ao mesmo tempo em que tremia. Então eu também tive a impressão de ouvir um som; ainda que não fosse um som horrível, mas antes uma nota musical extremamente grave e infinitamente distante, sugerindo um músico em alguma das casas vizinhas ou em alguma habitação para além do elevado muro sobre o qual eu jamais conseguira olhar. O efeito sobre Zann foi terrível, pois, deixando o lápis cair, de repente ele se levantou, pegou a viola e começou a rasgar a noite com a execução mais arrebatada que eu jamais ouvira de seu arco, salvo as vezes em que eu o escutara do outro lado da porta.
    Seria inútil tentar descrever o modo como Erich Zann tocou naquela noite pavorosa. Foi mais terrível do que qualquer coisa que eu jamais tivesse ouvido, porque dessa vez eu podia ver a expressão no rosto dele e ter certeza de que sua motivação era o medo em estado bruto, Zann tentava fazer barulho; afastar alguma coisa ou abafar alguma outra - O quê, eu não era capaz de imaginar, por mais prodigioso que me parecesse. A execução tornou-se fantástica, delirante e histérica, mas manteve todas as qualidades do gênio supremo que aquele estranho senhor possuía. Eu reconhecia a ária - era uma animada dança húngara, bastante popular nos teatros, e pensei por um instante que aquela era a primeira vez que eu ouvia Zann tocar a obra de um outro compositor.
    Cada vez mais altos, cada vez mais frenéticos soavam os gritos e os resmungos da viola desesperada. O músico pingava uma quantidade extravagante de suor e retorcia-se como um macaco, sempre com o olhar fixo na janela de cortinas fechadas. Naquele esforço insano eu quase distinguia a sombra de sátiros e bacantes dançando e rodando ensandecidos por entre abismos de nuvens e fumaça e relâmpagos. Então pensei ouvir uma nota mais estridente, mais constante, que não emanava da viola; uma nota calma, ponderada, resoluta e zombeteira vinda de algum ponto longínquo no Ocidente.
    Nesse instante a veneziana começou a chacoalhar com os uivos de um vento noturno que soprava do lado de fora como se respondesse à música insana que soava no lado de dentro. A estridente viola de Zann superava a si mesma, emitindo sons que eu jamais saídos de um instrumento musical. A veneziana chacoalhou com mais força, abriu-se e começou a bater contra a janela. Então o vidro quebrou com os impactos persistentes e o vento gélido entrou no quarto, fazendo as velas bruxulearem e agitando as folhas de papel na mesa onde Zann havia começado a escrever seu terrível segredo. Olhei para o músico e percebi que ele estava além de qualquer observação consciente. Seus olhos estavam esbugalhados, vidrados e baços, e a execução frenética havia se transformado em uma orgia cega, mecânica, irreconhecível, que nenhuma pena seria capaz de sugerir.
    Uma rajada súbita, mais forte do que as anteriores, arrastou o manuscrito em direção à janela. Desesperado, segui as folhas esvoaçantes, mas elas se foram antes que eu pudesse alcançar as vidraças estilhaçadas. Então lembrei do meu antigo desejo de olha por essa janela, a única em toda a Rue d'Auseil de onde se podia ver o declive além do muro e a cidade que se estendia lá embaixo. Estava muito escuro, mas as luzes da cidade ardiam, e eu esperava vê-las em meio ao vento e à chuva. Porém, quando olhei através daquela que era a mais alta dentre todas as trapeiras, enquanto as velas bruxuleavam e a viola insana ululava com o vento noturno, não enxerguei cidade alguma lá embaixo, nem as luzes amigáveis das ruas que eu conhecia, mas apenas a escuridão do espaço infinito; um espaço inimaginável, vivo graças ao movimento e à música, sem nenhuma semelhança com qualquer coisa terrena. E enquanto fiquei olhando, aterrorizado, o vento apagou as duas velas no interior do antigo sótão, deixando-me em uma escuridão selvagem e impenetrável com o caos e o pandemônio diante de mim e a loucura endemoniada da viola que ladrava às minhas costas.
    Sem ter como acender um lume, cambaleei para trás na escuridão, esbarrando na mesa, virando uma cadeira e por fim tateando até chegar ao ponte onde a escuridão gritava uma música impressionante. Eu poderia ao menos tentar salvar a mim mesmo e a Erich Zann, quaisquer que fossem os poderes contra mim. A certa altura senti alguma coisa gelada roçar em mim e gritei, mas o meu grito foi abafado pelo som da hedionda viola. De repente, na escuridão, o arco enlouquecido atingiu-me, e então eu soube que estava próximo ao músico. Estendi a mão e descobri o espaldar da cadeira de Zann; então encontrei e sacudi seu seu ombro, em um esforço por trazê-lo de volta à razão.
    Ele não reagiu, e a viola continuou a gritar sem trégua. Levei as mãos à cabeça, cujos acenos mecânicos logrei deter, e gritei em seu ouvido que precisávamos fugir dos inexplicáveis mistérios da noite. Mas Zann não respondeu nem diminuiu o ardor de sua música inefável, enquanto por toda a água-furtada estranhas correntes de vento pareciam dançar na escuridão e no caos. Quando minha mão encostou em sua orelha, estremeci mesmo sem saber por quê - só descobri quando toquei seu rosto imóvel; o rosto gélido, fixo, estático, cujos olhos vidrados esbugalhavam-se em vão no meio do nada. Então, depois de encontrar a porta e a enorme trava de madeira como que por milagre, precipitei-me para longe daquela coisa de olhos vidrados na escuridão e para longe dos uivos fantasmáticos da viola amaldiçoada cuja fúria seguia aumentando mesmo enquanto eu me afastava.


    Saltar, flutuar, voar pelas intermináveis escadarias do prédio escuro; correr sem pensar em direção à estreita, íngreme e antiga rua das escadarias e das casas inclinadas; estrondear pelos degraus e pelo calçamento até as ruas mais baixas e o rio pútrido junto ao vale dos depósitos; arquejar ao longo da grande ponte escura até as ruas mais largas, mais felizes, e até os boulevards que todos conhecemos; eis a horríveis lembranças que trago comigo. E lembro-me de que o vento não soprava, não havia lua e todas as luzes da cidade cintilavam.
    Apesar das minhas buscas e investigações minuciosas, desde então fui incapaz de reencontrar a Rue d'Auseil. Mas talvez não haja apenas motivos para lastimar; nem esse fato nem a perda, em abismos insondáveis, das folhas escritas em caligrafia miúda que traziam a única explicação possível para a música de Erich Zann.

  

Por H. P. Lovecraft

sábado, 2 de novembro de 2013

Poesias de Alberto Caeiro - O Guardador de Rebanhos (1911-1912)


II                                                    

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...



VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

  

IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quente,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

***

XI

Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.


XXX

Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinho,
E essa é a minha definição.


XLIII

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!


Por Fernando Pessoa, em Ficções do Interlúdio /1

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

L’ Inferno (1911)



Título original: L’Inferno
Lançamento: 1911 (Itália)
Direção: Giuseppe de Liguoro
Roteiro: Dante Alighieri(A Divina Comédia)
Gênero: Drama / Fantasia
Duração: 68 min
Tamanho: 697 + 700Mb
Formato: AVI
Idioma: Italiano
Legenda: Português


Sinopse:
Apesar do título, o filme também retrata a jornada pelo Purgatório e o Paraíso. Foi uma super produção de sucesso, a mais cara de sua época, com cenários muito vastos e efeitos especiais incríveis para seu tempo, com base nas ilustrações de Gustave Doré. De Liguoro retratou com grande perfeição os anjos, demônios e o próprio Lúcifer, numa produção que consumiu três anos de filmagens.

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